Oncologia: Da indicação médico-terapêutica à indenização pela “perda de uma chance”
- rbbsadvogados
- 24 de mai. de 2022
- 17 min de leitura
Quais os riscos para o profissional médico da indicação (ou não) de um tratamento médico oncológico em razão alto custo e suas eventuais repercussões no âmbito do judiciário.
Por: Alexandre Bastos.
RESUMO: O presente trabalho nasce da inquietação crescente de médicos oncologistas e estabelecimento de saúde especializados que, após avaliação e diagnóstico de seus pacientes, no dia a dia de suas atuações, se veem em um dilema: indicar ou não uma posologia medicamentosa baseada em quimioterápicos considerados de alto custo? Isto porque, a imensa maioria desses medicamentos não são disponibilizados pelas operadoras de planos de saúde, ou são reembolsados ao prestador apenas parcialmente, com glosas consideráveis (de até 50%), deixando o prestador de serviço médico, ou estabelecimento de saúde responsável pelo tratamento, onerados com parcelas pesadas do custo do tratamento do paciente. Se por um lado, indicar o medicamento de alto custo significa onerar e, consequentemente, inviabilizar a prestação de serviços médicos, por outro lado, deixar de indicar ao paciente oncológico a melhor e mais (potencialmente) eficaz posologia medicamentosa, conhecida e aprovada pela medicina contemporânea, em razão de fatores econômicos, viola o Código de Ética Médica. É neste ponto que a problemática ganha contorno jurídico relevante. Nestes casos, diante de uma indicação médica alternativa, readequada à cobertura financeira, o fracasso no tratamento, pode ser interpretado como “dano”? Uma vez judicializada a questão, o prestador de serviços médicos ou o estabelecimento de saúde pode ficar obrigado ao pagamento de indenização?
ABSTRACT: The present work arises from the growing concern of oncologists and specialized health establishments who, after evaluating and diagnosing their patients, in their daily activities, find themselves in a dilemma: to indicate or not a drug dosage based on chemotherapy considered expensive? This is because the vast majority of these medicines are not made available by health plan operators, or are reimbursed to the provider only partially, with considerable glosses (up to 50%), leaving the medical service provider or health establishment responsible for the treatment. , burdened with heavy portions of the cost of patient care. If, on the one hand, indicating the high-cost drug means encumbering and, consequently, making the provision of medical services unfeasible, on the other hand, failing to indicate to the oncological patient the best and most (potentially) effective drug dosage, known and approved by medicine. contemporary society, due to economic factors, violates the Code of Medical Ethics. It is at this point that the issue gains relevant legal contours. In these cases, when faced with an alternative medical indication, adjusted to financial coverage, can treatment failure be interpreted as “harm”? Once the matter has been brought to court, can the provider of medical services or the health establishment be obliged to pay compensation?
I – DA REALIDADE DOS FATOS
1. Em estreita resenha, trata-se de um assunto delicado e polêmico da área da saúde, mais especificamente, da oncologia clínica e que até o momento segue sem alinhamento jurídico único. Uma temática recorrente e crescente nos tempos atuais e que envolve profissionais médicos e estabelecimentos médicos especializados em oncologia. Rotineiramente, após avaliação do paciente e diagnóstico estabelecido uma equipe médico-oncológica define o tratamento, com base nas terapias que tenham potencial de melhores resultados, para o tipo de patogênico daquele paciente.
2. Ocorre em muitos casos que a melhor posologia medicamentosa e/ou médico-terapêutica consiste na utilização de quimioterápicos de alto custo, frequentemente, expurgados das listas de cobertura de certos planos de saúde, ou ainda, cobertos parcialmente, com glosas importantes (de até 50%). Nestes casos, se o prestador de serviços médicos, optar por realizar o tratamento do paciente com base na melhor e mais (potencialmente) eficaz posologia, terá prejuízo na prestação de serviço, uma vez que o reembolso financeiro de alguns planos de saúde conveniados, não cobrem nem mesmo os custos dos quimioterápicos, quiçá, os insumos, manutenção de equipamentos, estrutura farmacológica e honorários profissionais da equipe médica envolvida.
Eis o dilema dos prestadores de serviços em oncologia...
3. Qualquer equipe médica, está permanentemente vinculada ao dever ético de avaliar o quadro clínico do paciente, estabelecer um diagnóstico preciso e aviar a melhor opção terapêutica, assim considerada aquela que tenha a maior (potencial) eficácia no tratamento do tipo patogênico do paciente.
4. Entretanto, naqueles casos em que cobertura financeira oferecida pelo plano de saúde do paciente é deficitária, com reembolso insuficiente, indicar a melhor opção terapêutica pode significar prejuízo financeiro grave, levando à inviabilidade financeira da prestação de serviços de saúde. Déficit capaz inclusive de levar a extinção de sua atividade empresarial. Por outro lado, se o médico preterir a indicação da melhor posologia por outra mais barata, a fim de adequar o custo financeiro à contrapartida do plano de saúde do paciente, poderá incorrer em falta do dever ético, em prejuízo a saúde do paciente.
5. Neste cenário, se constatada que a indicação médica, não se valeu das melhores práticas e posologias mais eficazes aplicáveis, o resultado insatisfatório, pode sim ser entendido como “dano” e ser objeto de pleito judicial indenizatório. Temática jurídica que passamos a esmiuçar mais adiante.
II - DOS TERMOS DO CONVÊNIO
6. O primeiro ponto sensível a destacar nesta análise jurídica é o conteúdo dos termos contratuais entre a prestadora de serviços médicos e de saúde e a operadora do plano de saúde do paciente.
7. Isto porque, não há viabilidade financeira para um estabelecimento médico realizar tratamento oncológico, arcando com os custos de aquisição dos medicamentos, sem subsídio suficiente para cobrir os custos da atividade médico-terapêutica. Logo, o valor da tabela de repasses do plano de saúde deve ser condizente com o desembolso financeiro do prestador de serviço, caso contrário, o paciente deveria (em tese) arcar com as despesas excedentes.
8. Entretanto, é muito comum os convênios de planos de saúde utilizarem em seus contratos cláusulas proibitivas que vedam aos prestadores de serviços a realização de qualquer cobrança adicional, de qualquer valor, a qualquer título, diretamente do paciente conveniado. Se for o caso, as imposições do plano de saúde, que ditam (unilateralmente) os valores de coberturas e glosas das tabelas de remuneração e reembolso, ao mesmo tempo que veda a coparticipação do paciente, prejudica o prestador de serviço e viola o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de convênio.
III – DA ÉTICA MÉDICA
9. A prestação de serviços médicos em geral, inclusive a oncológica, visa implementar um fluxo de diagnóstico e tratamento médico-terapêutico, que seja o mais o eficaz possível, segundo o tipo patogênico e o estado evolucional do quadro clínico do paciente, com base nas melhores técnicas aplicáveis, desde que reconhecidas e cientificamente aprovadas pela medicina. A atividade de prestação de serviços, incluindo serviços médicos e oncológicos, está regulada em vários diplomas legais, dentre eles o Código Civil de 2002, a Lei 9.656/1998 (Lei dos Plano de Saúde), a Lei 12.842/2013 (Lei de Regulação da Medicina), bem como as normas do Conselho Federal de Medicina - CFM, especialmente, no Código de Ética Médica (Resolução CFM n.º 2.217/2018), entre outras.
10. O Art. 2.º da Lei 12.842/2013 é categórico ao determinar que o médico deve atuar com total zelo e empenho sempre em benefício da saúde do paciente. Leiamos:
Art. 2º O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza.
11. Isto é, o médico tem o dever ético legal de empenhar todo seu conhecimento técnico, durante a avaliação do estado de saúde do paciente, a fim de buscar a melhor e mais (potencialmente) eficaz alternativa de tratamento médico-terapêutica aplicável ao caso, aceita pela medicina. A mesma obrigação legal também está prevista pelo Código de Ética Médica, sob a letra do Art. 20, da Resolução 2.217/2018, do Conselho Federal de Medicina). In verbis:
É vedado ao médico:
[...]
Art. 20 Permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público ou privado da assistência à saúde, interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade.
12. Neste passo, indiscutivelmente, nenhum profissional médico pode deixar de aviar o melhor, mais eficaz e benéfico tratamento ao paciente a pretexto da precariedade da cobertura financeira do plano de saúde, sob pela de violação de dever ético no exercício da medicina, determinado por Lei.
13. Mais além, a atuação médica que passe a escolher as posologias médico-terapêuticas com base no lastro de cobertura financeira dos planos de saúde de seus pacientes, eventualmente, preterindo a melhor técnica, ou a melhor e mais eficaz alterativa de tratamento, viola os princípios básicos da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de Paris, 2005, da qual o Brasil é signatário. Vejamos o que diz o Art. 3.º, alínea “b” da Declaração:
Art. 3º - Dignidade Humana e Direitos Humanos
b) Os interesses e o bem-estar do indivíduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciência ou da sociedade.
14. Por este motivo, entendemos ser inafastável o dever de toda equipe médica realizar o diagnóstico, aviar e prescrever a melhor e mais (potencialmente) eficaz alternativa de tratamento médico-terapêutica, ou quimioterápica, com base nas melhores técnicas conhecidas e cientificamente aprovadas pela medicina, em favor do paciente, independente de fatores econômicos.
IV – DO EQUILÍBRIO CONTRATUAL
15. O contrato é em nosso tempo a fonte mais dinâmica e recorrente de direitos civis em exercício. A base da sua reiterada aplicação é a liberdade contratual, ou seja, em regra, as partes maiores e capazes na ordem civil, tem liberdade de contratar entre si, independentemente, de intervenção do Poder Público, desde que pactuem objeto lícito, bem como obedeçam a forma prescrita em Lei, quando for o caso.
16. No caso em estudo, o contrato entre o prestador de serviços médicos, seja pessoa física ou jurídica, e determinada operadora de plano de saúde é um exemplo de instrumento contratual empresarial, cujos termos devem observar a forma prescrita em Lei. Mais especificamente, obedecer ao previsto no Art. 17-A, 2.º, da Lei 9.656/1998. Leiamos:
Art. 17-A. As condições de prestação de serviços de atenção à saúde no âmbito dos planos privados de assistência à saúde por pessoas físicas ou jurídicas, independentemente de sua qualificação como contratadas, referenciadas ou credenciadas, serão reguladas por contrato escrito, estipulado entre a operadora do plano e o prestador de serviço.
§ 2o O contrato de que trata o caput deve estabelecer com clareza as condições para a sua execução, expressas em cláusulas que definam direitos, obrigações e responsabilidades das partes, incluídas, obrigatoriamente, as que determinem:
I - o objeto e a natureza do contrato, com descrição de todos os serviços contratados;
II - a definição dos valores dos serviços contratados, dos critérios, da forma e da periodicidade do seu reajuste e dos prazos e procedimentos para faturamento e pagamento dos serviços prestados;
III - a identificação dos atos, eventos e procedimentos médico-assistenciais que necessitem de autorização administrativa da operadora;
IV - a vigência do contrato e os critérios e procedimentos para prorrogação, renovação e rescisão;
V - as penalidades pelo não cumprimento das obrigações estabelecidas;
17. Assim sendo, verificamos que, para gozar de validade, os contratos das operadoras de planos de saúde com os profissionais e estabelecimentos de saúde contratados, referenciados ou credenciados, devem prever de modo expresso todos os serviços contratados, com seus respectivos valores, índices e periodicidades de reajustes, prazos de faturamento e efetivo pagamento, bem como sua vigência e casos de prorrogação, renovação, ou rescisão.
18. Notemos que, em nenhum momento a Lei obriga os prestadores de serviços médicos ou os estabelecimentos de saúde a assumirem para si nenhuma parcela do custo financeiro do tratamento médico de que necessita o paciente. Isto porque, a garantia financeira de assistência e risco de saúde é incumbência do plano de saúde, conforme se lê no Art. 1.º da Lei 9.656/1988, aqui transcrito:
Art. 1o Submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade, adotando-se, para fins de aplicação das normas aqui estabelecidas, as seguintes definições:
I - Plano Privado de Assistência à Saúde: prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor;
19. Pela letra da Lei, dá-se haver que o dever de garantir o custeio integral e ilimitado das posologias de assistência à saúde é da operadora do plano de saúde e não do prestador de serviços, nem tampouco do estabelecimento de saúde. Logo, a Lei não obriga ao médico que indicou o tratamento com quimioterápico de alto custo a arcar com nenhuma parcela dos custos e despesas do tratamento do paciente. Em outras palavras, o contratado, referenciado ou credenciado do plano de saúde não está obrigado a prestar serviços médicos ou de saúde, arcando com a aquisição dos quimioterápicos, sem a contrapartida financeira suficiente.
20. Entretanto, é fato notório por todos sabido, o tamanho arroxo das tabelas de remuneração de serviços ofertadas pelas operadoras de planos de saúde no mercado nacional, sem falar nas glosas e capciosas limitações de restituição ou reembolso. Logo, é muito comum contratos de certas operadoras de planos de saúde que contém cláusulas leoninas ou, que padeçam de irregularidades que afetam o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Vejamos:
Se o contrato da operadora do plano de saúde não prevê de forma expressa os serviços a serem prestados, nem define os valores a serem pagos pelo plano em cada evento; ou
Se o contrato não prevê a periodicidade e o índice de reajuste aplicável; ou, se mesmo prevendo os reajustes, estes não estejam sendo devidamente implementados; ou ainda
Se houve aplicação das tabelas, glosas ou limitações de restituição, que interfiram na definição dos valores a de remuneração;
21. Nestas circunstâncias, se a contrapartida do plano de saúde não for suficiente para bancar as necessidades medico-terapêuticas do paciente, consideramos que o contrato rompeu o limite do “equilíbrio econômico-financeiro”, tornando-se impraticável para o prestador de serviço. Neste diapasão, verificamos que, de modo indireto, a operadora de plano de saúde exporta o risco negocial que lhe fora atribuído por lei, para o prestador de serviços, sem qualquer amparo legal. Conduta que viola a boa-fé contratual, assim entendida como a lealdade e a retidão ética no trato entre os pactuantes.
22. Entendimento jurídico externado pelo renomado mestre Pablo Stolze, quando trata da denominada, “boa-fé objetiva”:
Assim, em uma dada relação jurídica, presente o imperativo dessa espécie de boa-fé, as partes devem guarda entre si a lealdade e o respeito que se esperam do homem comum.
[...] a boa fé é, antes de tudo, uma diretriz principiológica de fundo ético e espectro eficacial jurídico.
[...] consiste em uma verdadeira regra de comportamento, de fundo ético e exigibilidade jurídica.
23. Em palavras simples, a boa-fé contratual, também conhecida com “boa-fé objetiva”, não é um mero preceito moral, mais sim, condição de eficácia do contratual, conforme previsão legal do Art. 422, do Código Civil de 2002, sem a qual as disposições contratuais não têm valor. Isto porque, a eficácia das disposições contratuais depende da observância de outras regras, implícitas ao teor do pacto, por força de Lei, entre elas, a obrigatoriedade do trato leal, transparente e fidedigno, entre as partes. No caso em venerando, a conduta da operadora de plano de saúde que, por meio do uso de tabelas defasadas, glosas e/ou limitações de restituições ou reembolso, desvirtua a definição do preço dos serviços prestados, reduzindo a contrapartida remuneratória do prestador de serviços médicos abaixo do custo de aquisição dos medicamentos, transferindo ilegitimamente o risco do seu negócio para o terceiro prestador de serviços médicos, fere do equilíbrio econômico-financeiro e não pode ser considerada leal.
24. Nestas condições o contrato não atende o previsto no Art. 17-A, § 2.º, inciso II, da Lei 9.656/1988, pois a definição do preço dos serviços contratados e prestados fica prejudicada. Com efeito, a consecução do contrato não obedece ao princípio da boa-fé, entalhado no Art. 422, do Código Civil, nem tampouco cumpre sua função social, como exige o Art. 421, também do Código Civil. Por evidente, a remuneração deficitária inviabiliza a atividade médica, a ponto de sufocar as receitas do profissional médico e, por conseguinte, podendo levá-lo a extinguir suas atividades e com ela, vários empregos, receitas tributárias e atendimentos qualificados de saúde à comunidade.
25. Se olharmos a mesma situação pela ótica do direito empresarial - pertinente quando as partes envolvidas são pessoas jurídicas - vamos nos deparar com tratamento jurídico semelhante. Além de uma função social, o contrato firmado entre empresas, também tem uma finalidade econômica, usualmente, ligada à obtenção de lucro. Logo, o contrato empresarial que, ao invés de proporcionar aos participantes o resultado almejado (lucro), passa a imputar prejuízos e perdas a um ou mais participantes, não cumpre sua finalidade econômica e, consequentemente, não cumpre sua função social. Assim como nos ensina a obra da professora Paula A. Forgioni. Leiamos:
“As partes não contratam pelo mero prazer de trocar declarações de vontade. Ao se vincular, as empresas tem em vista determinado escopo, que se mescla com a função que esperam o negócio desempenhem; todo negócio possui uma função econômica.”
26. Logo, diante dessas premissas, na falta da boa-fé e do atingimento de sua função social, o contrato se torna ineficaz, de modo que, o pactuante prejudicado não estaria obrigado a cumprir suas disposições.
27. Na prática, diante de tal situação, desde que devidamente constatada e comprovada, de modo irrefutável, a partir de documentos idôneos, pode o prestador de serviços ou estabelecimento de saúde ficar desobrigado de realizar o tratamento médico-terapêutico, para o qual não recebeu a equivalente contrapartida monetária em cota suficiente. Situação singular, pontual, delicada e que comporta diversos desdobramentos jurídicos (e até judiciais), tanto no bojo do próprio contrato, como no âmbito do direito médico e do direito do consumidor, podendo gerar, entre outros efeitos, direta ou indiretamente, a rescisão do contrato do prestador de serviço com a dita operadora de plano de saúde.
28. Por outro lado, existe a possibilidade, ainda que remota, de o prestador de serviço, ou o estabelecimento de saúde, estar legalmente obrigado a suportar estes custos, através do contrato de admissão/inclusão, referenciamento ou credenciamento. Neste caso, se o contrato assinado pelo prestador de serviços médicos, preenche categoricamente todos os requisitos do Art. 17-A, § 2.º, da Lei 9.656/1998 e não estiver defasado em nenhum aspecto financeiro, o único remédio é levar o tema para mesa de negociação para buscar um reajuste econômico que proporcione superávit razoável em benefício da atividade médico-empresarial. Visto que, afastadas as hipóteses de irregularidade contratual, defasagem ou onerosidade excessiva unilateral, não há como denegar o contrato sem incorrer nas penalidades de seu descumprimento.
29. Por derradeiro, porém também relevante, insta alertar para o fato de que o prestador de serviços médicos poderá, alternativamente, solicitar, voluntária e unilateralmente, a rescisão do contrato com a operadora de plano de saúde, observando-se em todo caso as condições e (eventuais) penalidades previstas em contrato.
V - DOS RISCOS JURÍDICOS
30. Pois bem, diante dos fatos apresentados, confrontados como arcabouço legal e normativo do ordenamento jurídico vigente, deduzimos 4 principais situações de risco, a que passamos a esmiuçar. São as seguintes:
Primeira – Risco Médico: Risco de acionamento judicial, em razão de prescrição de posologia quimioterápica escolhida de acordo com a cobertura financeira do plano de saúde, prescindida de outras alternativas médico-terapêuticas melhores e/ou mais (potencialmente) eficazes para o estado de saúde do paciente;
Segunda – Risco de Caixa: Riscos de perdas econômicas substanciais no fluxo de caixa do prestador de serviço, pela manutenção da prestação de serviços com prejuízo financeiros, em razão do déficit dos repasses do plano de saúde;
Terceiro – Risco de Suspensão do Serviço: Risco de acionamento judicial tanto pelo cliente/paciente, quanto pelo plano de saúde, caso o prestador de serviços venha optar pela suspensão dos serviços, que não oferecerem cobertura financeira integral e suficientemente pelo plano de saúde do paciente.
31. De todos os riscos apontados acima o mais gravoso é o “risco médico”. No caso de qualquer médico, despropositadamente, decidir passar a escolher a posologia médico-terapêutica do paciente com base no alcance da cobertura financeira do plano de saúde do paciente, preterindo outras alternativas de tratamento aplicáveis, melhores, ou (potencialmente) mais eficazes e benéficas ao paciente, incorrerá em ato ilícito. Com efeito, na ordem jurídica atual, quem pratica ato ilícito fica sujeito ao dever de indenizar os danos causados ao ofendido, conforme prevê o Art. 927, do Código Civil de 2002.
32. Por conseguinte, nestas circunstâncias, se houver piora no estado do paciente ou até mesmo o óbito, o fato pode ser considerado “dano”, ficando o prestador de serviços médicos responsável, ou estabelecimento de saúde, sujeitos ao dever de indenizar. Ou seja, o prestador de serviços médicos poderá ser instado judicialmente a indenizar o paciente, pelo dano moral, consistente na dor (física ou psicológica) trazida pelo agravamento de sua saúde; ou ainda, no caso de morte, a indenizar a família do paciente, pelo dano moral, consistente na “perda de uma chance” (potencial), seja de cura, ainda que remota, seja de melhora na qualidade de vida ou de maior longevidade.
33. Este é o entendimento majoritário esboçado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, conforme se lê no acórdão abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - ERRO MÉDICO - RESPONSABILIDADE CONTRATUAL DO HOSPITAL - PROVA PERICIAL MÉDICA - FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO EVIDENCIADA - QUANTUM INDENIZATÓRIO - MAJORAÇÃO.
- Como a obrigação do médico, em regra, é de meio e não de resultado, somente se verificada a ocorrência de conduta inadequada sob uma perspectiva dos padrões científicos é que se poderá concluir pela existência de erro médico apto a gerar o dever de indenizar.
- A responsabilidade médico-hospitalar também comporta a análise sob a ótica da perda de uma chance de cura ou de sobrevida, já que mesmo sendo a doença do paciente a causa de sua morte, não se pode deixar de reconhecer no entanto que, em certas situações concretas, a omissão médica ou a falha de tratamento pode ter privado o paciente de uma chance de cura ou de sobrevida.
- Existindo prova que correlacione o atendimento médico e/ou as circunstâncias a ele pertinentes ao falecimento da paciente, configura-se o dever de indenizar.
- Recurso da ré ao qual se nega provimento e recurso do autor ao qual se dá parcial provimento.
(TJMG - Apelação Cível 1.0313.11.023886-9/001, Relator(a): Des.(a) Lílian Maciel , 20ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 15/09/2021, publicação da súmula em 20/09/2021)
34. Quanto ao “risco de caixa”, ressaltamos que, trata-se de risco de caráter econômico-empresarial, ou seja, risco de dilapidação patrimonial da pessoa jurídica. Estabelecida a situação contumaz de prestação de serviços, com utilização de posologias quimioterápicas de alto custo, com recebimento de repasses financeiros insuficientes, colocará a atividade em estado de precariedade ou até mesmo falimentar, a depender do fluxo de atendimentos e do tempo de permanência do déficit.
35. O terceiro risco indicado, “risco de suspensão do serviço”, é o mais complexo. Isto porque, se o prestador de serviços ou estabelecimento de saúde, entender pela suspensão a prestação de serviços, naqueles casos em que a contrapartida financeira não for suficiente, a fim de evitar prejuízos, este poderá ser acionado judicialmente pelo paciente, em razão da recusa de demanda latente e disponível, mediante pronto pagamento. Vejamos: o Código de Defesa do Consumidor determina que, uma vez realizada a oferta pública de produtos e serviços, o fornecedor, ou o prestador de serviços, não poderá recusar o atendimento das demandas, mediante pronto pagamento, salvo não quando houver disponibilidade. Leiamos o Art. 39, IX, do CDC:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
IX - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais;
36. Quando o paciente se apresenta ao estabelecimento de saúde para atendimento e exibe as credenciais de um ou outro plano de saúde, a prestação de serviços considera-se “prontamente paga”, uma vez que Lei 9.656/1988, como já mencionado, obriga à operadora de plano de saúde garantir o custeio do tratamento, sem limite financeiro. Portanto, o prestador de serviços médico ou o estabelecimento de saúde somente poderia refugar o atendimento no caso de não haver cobertura.
37. Notemos que, neste caso, a cobertura existe, apenas é gravemente deficitária e insuficiente, mas não é ausente. Logo, caberia ao contratado arguir e comprovar que a cobertura gravemente deficitária, por esmaecer o equilíbrio econômico-financeiro, impondo desarrazoadamente ao prestador de serviços ônus atribuídos (por lei) à operadora do plano de saúde e que, portanto, deve ser entendida e equiparada à “ausência de cobertura”.
38. Salientamos que, neste cenário, mesmo que o prestador, ao suspender o serviço, justificar ao paciente os motivos da recusa do atendimento, demonstrando o descompasso financeiro da cobertura do plano de saúde, certamente não ficará livre da sabatina judicial. Isto porque, ainda que o paciente fique convencido de que o plano de saúde é o único responsável pelo desatendimento e venha a colocá-lo sozinho no polo passivo do pleito judicial, certamente, a defesa jurídica da operadora do plano de saúde chamará o prestador de serviço para o bojo do processo.
VI - CONCLUSÃO
39. Considerando o atual cenário legal e normativo, que rege as matérias debatidas concluímos que, no caso em tela, indiscutivelmente, a equipe médica não pode dirigir as alternativas de tratamento com base na disponibilidade de cobertura financeira do plano de saúde do paciente. Isto porque, é dever legal do médico atuar com total empenho, na busca do melhor e mais (potencialmente) eficaz tratamento médico-terapêutico aplicável, considerando o tipo patogênico e a evolução do quadro clínico paciente, a partir das melhores técnicas conhecidas e aprovadas pela medicina.
40. Concluímos também, que o prestador de serviços médicos, ou estabelecimento de saúde, não está obrigado por Lei a arcar com nenhuma parcela de ônus, custos ou despesas do tratamento médico de que necessita o paciente, sem a contrapartida equivalente. Logo, as tabelas de remuneração defasadas, glosas e limitações de restituição, (eventualmente) impostas pelas operadoras de planos de saúde, capazes de gerar repasses gravemente deficitários, inferior aos custos dos produtos farmacológicos, constitui violação da boa-fé contratual (boa-fé objetiva), tornando, na forma da Lei, o contrato ineficaz perante o prestador prejudicado, desobrigando-o de realizar o tratamento para o qual não recebeu o repasse suficiente à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ressalvados os casos de perfeito, completo e inquestionável preenchimento dos requisitos contratuais previstos no Art. 17-A, § 2.º, da Lei 9.656/1998.
41. Concluímos ainda, singularmente, que todas as condutas que levem à denegação do contrato da consulente com a operadora de plano de saúde importam em risco. Logo, nenhuma medida deve ser tomada antes de levar toda a temática à mesa de negociação, de modo persistente e recorrente, documentando-se as reuniões, eventos e comunicações.
42. Em último caso, se frustradas todas as tratativas (documentadas), a suspensão das prestações de serviço que importem prejuízo grave, poderá ser tomada, em último caso, com supedâneo na defesa do patrimônio da empresa, da boa-fé contratual e da continuidade da atividade médico-empresarial, após notificação prévia da operadora de plano de saúde. Lembrando que esta é uma providência extrema que traz grande potencial de judicialização da questão, em desfavor do prestador de serviço e que, não há jurisprudência consolidada sobre o assunto.
43. Concluímos por fim, que a rescisão do contrato de prestação de serviço com a operadora do plano de saúde, pode representar, ao mesmo tempo, um risco negocial, uma vez que pode gerar o afastamento de um mercado consumidor e, consequente, uma perda de receitas; ou, uma alternativa para evitar a submissão às leoninas disposições contratuais impostas pela operadora do plano de saúde.
VII – REFERÊNCIAS
44. Código Civil de 2002;
45. Lei 9.656/1998 (Lei dos Plano de Saúde);
46. Lei 12.842/2013 (Lei de Regulação da Medicina);
47. Código de Ética Médica (Resolução CFM n.º 2.217/2018);

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